terça-feira, 31 de maio de 2011

Nós mudamos ontem, professora

O título do texto faz lembrar um outro texto de autoria de Fidêncio Bogo "Nóis mudemu". Resolvi não repetir o mesmo título. Coloquei-o em forma gramatical (opa! conjuguei o verbo consonante a pessoa) para evitar o preconceito linguístico e, com isso, não privilegiar uma ou outra variante da língua. Ainda mais em tempo de livro didático que ensina as pessoas a falarem "errado" e menosprezando o papel da escola enquanto agente social que ensina, educa e etc.. Vamos ao texto na íntegra.
O ônibus da Transbrasiliana deslizava pela Belém-Brasilia rumo a Porto Nacional. Era abril, mês das derradeiras chuvas. ´No céu, uma luazona enorme pra namorado nhenum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejant era um presépio, toda poesia e misticismo. Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal....Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e  trágico.
As aula tinham  começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardátarios. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que voc~e faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemu onti, fessora. Nóis veio da fazenda. (Risadinhas da turma)
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: nós mudamos, tá?
-Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: Oi, nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo! No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gazações.
- Pai, vô mais pra escola!
- Oxente! Móde quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da meninada1 Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira. Aí me dei conta de que eu nem sabbia o nome dele. procurei no diário de classe e soube que se chamava´Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
- É, professora, meu fio não aguentou as gozação da meninada. Eu tentei fazê ele continua, mas não teve jeito. Ele tava chatiado demais. Bosta de de vida! Eu devia di té ficado na fazenda côa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasilia, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é moço?
- A senhora não lembra demim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de sarcedócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo, lembra?
Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro, como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amassô. E êta diabo bem de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão  pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doeça. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazê. a escola fais uma farta danada. Eu não devia di té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
 - Meus Deus
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão bburra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. O rapaz afastou-me de si suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa
Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, te mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamos, mudaaamooos... Super usada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas.
- e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim ue se diz, minino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fala como eu! Você, não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfifure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra!"
E siga desarmado para o matadouro.
Fidêncio Bogo